O Fator Humano na Sustentabilidade dos Caminhos de Ferro

GESTÃO 05-03-2025
O Fator Humano na Sustentabilidade dos Caminhos de Ferro
O Fator Humano na Sustentabilidade dos Caminhos de Ferro
O Fator Humano na Sustentabilidade dos Caminhos de Ferro
O caminho de ferro é a base da mobilidade e a sua força de trabalho o alicerce. Resolver a escassez de pessoal é essencial para o futuro do sector.

 

Natalina Magro, Marketing and Communication Manager @SISCOG  |  7 min leitura

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A indústria ferroviária tem sido, durante muito tempo, a espinha dorsal do transporte público moderno. Desempenha um papel crucial no movimento eficiente de pessoas e mercadorias entre regiões, sendo também a opção mais amiga do ambiente graças a emissões mais baixas.

No entanto, nos bastidores, o elemento humano - os trabalhadores que asseguram o bom funcionamento das operações - apresenta desafios significativos para os operadores.

A escassez de pessoal tornou-se uma questão premente, impulsionada por uma combinação de fatores demográficos, económicos e específicos da indústria. Abordar estes desafios é essencial, não apenas para manter serviços de transporte fiáveis, mas também para garantir o futuro das operações ferroviárias.

 

CAUSAS PRINCIPAIS DA ESCASSEZ DE PESSOAL

A escassez de pessoal no sector ferroviário resulta de uma variedade de fatores, como:

  1. Mudanças Demográficas: O envelhecimento da força de trabalho é um dos principais fatores. Uma proporção significativa dos trabalhadores ferroviários está a aproximar-se da idade da reforma, e o número de jovens que ingressa na indústria não é suficiente para os substituir. No Reino Unido, por exemplo, de acordo com o mais recente inquérito NSAR’s Workforce Survey 2024, a força de trabalho ferroviária diminuiu 9,4% no último ano e um terço dos funcionários tem 50 anos ou mais (apesar de um aumento de 20% no número de trabalhadores com menos de 25 anos, os jovens que entram no setor ainda são insuficientes para compensar as reformas).

  2. Mudança nas Expectativas da Força de Trabalho: As novas gerações estão cada vez mais a priorizar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal, flexibilidade e oportunidades de crescimento. As funções tradicionais no sector ferroviário, com horários exigentes e estruturas rígidas, têm dificuldade em atrair este grupo de talento.

  3. Pressões Económicas: A inflação e o aumento dos custos levaram alguns operadores a reduzir os esforços de recrutamento e retenção na tentativa de cortar despesas, agravando a lacuna de mão-de-obra.

  4. Impacto da Pandemia: A pandemia de COVID-19 levou muitos trabalhadores a abandonar a força de trabalho ou a optar por funções menos exigentes e remotas, intensificando a escassez num sector que depende fortemente de trabalho presencial.

  5. Concorrência de Outros Sectores: Outros sectores que oferecem salários mais altos, condições de trabalho mais flexíveis e opções de trabalho remoto - algo impossível nas funções operacionais ferroviárias - conseguiram atrair potenciais candidatos para fora da indústria ferroviária.

  6. Cultura no Local de Trabalho: As culturas tradicionais de trabalho em algumas organizações ferroviárias muitas vezes não satisfazem as expectativas dos colaboradores modernos, particularmente no que diz respeito à inclusão, diversidade e inovação.

  7. Disrupção Tecnológica: O rápido avanço tecnológico exige que os trabalhadores se adaptem rapidamente a novos sistemas, mas nem todos têm as competências ou a disponibilidade para fazer a transição, o que leva à rotatividade.

  8. Barreiras Regulatórias e de Certificação: Requisitos rigorosos para formação e certificação podem atrasar o processo de contratação de novos funcionários, dificultando o preenchimento rápido das vagas.

 

IMPACTO NOS OPERADORES 

A escassez de pessoal qualificado tem implicações significativas para os operadores ferroviários:

  • Disrupções no Serviço: A falta de pessoal adequado resulta frequentemente em atrasos, cancelamentos e qualidade inconsistente dos serviços, o que mina a confiança e a satisfação dos passageiros/clientes.

  • Ineficiências Operacionais: Os operadores podem ter dificuldade em otimizar o uso de recursos, como a correspondência eficaz entre o pessoal disponível as necessidades operacionais. Isso pode levar a ineficiências, desperdício de recursos e sobrecarga do pessoal existente, o que pode causar desmotivação, problemas de saúde e, eventualmente, agravar a escassez de pessoal.

  • Riscos de Segurança, Regulatórios e Legais: A falha em manter uma equipa de pessoal adequada para garantir segurança, pontualidade e fiabilidade pode resultar em multas, auditorias e penalizações.

  • Dificuldade em Expandir Operações: Uma capacidade de pessoal limitada restringe a possibilidade de expandir serviços ou introduzir novas rotas, dificultando as oportunidades de crescimento em resposta ao aumento da procura ou oportunidades de mercado. Os caminhos de ferro Belgas (SNCB), por exemplo, anunciaram em setembro de 2024 a redução dos seus planos de expansão principalmente porque não conseguia encontrar pessoal suficiente e estavam a enfrentar uma escassez de maquinistas.

  • Oportunidades de Receita Perdidas: A redução de serviços devido a problemas de pessoal leva a uma redução da venda de bilhetes e a menores receitas de serviços acessórios, como comodidades a bordo ou logística de carga.

  • Moral do Pessoal e Retenção Reduzidas: Sobrecarregar a força de trabalho existente para compensar a escassez de pessoal cria exaustão e insatisfação, o que pode levar a taxas mais elevadas de rotatividade e a um círculo vicioso de problemas de recrutamento.

  • Perceção Pública Negativa: Disrupções persistentes e problemas na qualidade do serviço de transporte podem prejudicar a reputação de um operador, desencorajando os passageiros e clientes de carga a confiar nos serviços ferroviários.

 

ESTRATÉGIAS PARA REFORÇAR A EQUIPA

Enfrentar este desafio requer uma abordagem multifacetada, combinando ações imediatas com estratégias de longo prazo.

  1. Iniciativas de Recrutamento e Retenção 
    Os operadores ferroviários devem modernizar as práticas de recrutamento para atrair uma força de trabalho diversificada. Passos cruciais são o destacar do potencial de crescimento profissional, incorporar opções de trabalho flexível e a possibilidade de trabalho a tempo parcial, oferecer uma compensação e benefícios competitivos que se igualem aos de outras indústrias e garantir caminhos claros para o progresso na carreira.
    Um exemplo notável é a iniciativa dos Caminhos de Ferro Indianos para enfrentar a escassez de pessoal, ao lançar uma campanha de recrutamento que incluiu uma nova abordagem para preencher temporariamente vagas através da recontratarão de funcionários ferroviários reformados.
    Adicionalmente, apoiar o bem-estar do pessoal é essencial. Iniciativas que abordem tanto a saúde mental como física podem melhorar significativamente a satisfação dos empregados, tornando o setor ferroviário mais atrativo, tanto para novos talentos como para os já existentes.

  2. Formação Avançada, Aperfeiçoamento de Competências e Transferência de Conhecimento 
    Investir em programas de formação, tanto para novos contratados como para os colaboradores existentes, pode ajudar a colmatar lacunas de competências. Simulações baseadas em tecnologia e plataformas de e-learning equipam eficazmente os trabalhadores com as ferramentas necessárias para se destacarem nas suas funções. Iniciativas de mentoria permitem que os trabalhadores mais experientes partilhem os seus conhecimentos antes de se reformarem. 
    Uma iniciativa relevante nesta área é o projeto Skill Training Alliance For the Future European Rail System (STAFFER), um projeto financiado pelo ERASMUS+ com a duração de quatro anos, que desenvolveu um plano de ação a longo prazo para colmatar as lacunas de competências e a escassez de mão-de-obra no setor ferroviário europeu. O STAFFER foca-se na requalificação e aperfeiçoamento da força de trabalho, ao mesmo tempo que propõe estratégias para atrair talentos jovens para o setor.

  3. Processos Regulamentares e de Certificação Simplificados
    A colaboração com os reguladores é essencial para acelerar os processos de certificação de novos contratados, permitindo uma integração mais rápida na força de trabalho. A criação de programas de formação interna alinhados com os padrões de certificação pode reduzir ainda mais os atrasos, garantindo que os novos colaboradores estejam prontos para contribuir de forma eficaz desde o início.

  4. Adaptação às Preferências da Força de Trabalho sem Perder Eficiência
    Ao recorrer à tecnologia para oferecer maior flexibilidade e personalização, os operadores ferroviários podem alinhar-se com as expectativas da força de trabalho moderna. Ferramentas que apoiam modelos de trabalho híbrido, quando aplicável, ou facilitam o planeamento flexível e o trabalho em tempo parcial, podem aumentar significativamente os esforços de recrutamento e retenção. Mesmo com planos de trabalho desenhados pelos próprios colaboradores, as operações podem agora ser mantidas de forma eficiente, graças a algoritmos avançados de otimização.  Soluções de software inovadoras desempenham um papel crucial na resolução da escassez de pessoal em áreas como:
  • Empoderamento dos Colaboradores com Opções de Licitação: Permitir que os funcionários escolham turnos e escalas que se alinhem com as suas preferências pessoais pode promover maior satisfação e envolvimento.
  • Maior Transparência e Equidade: Algoritmos avançados podem garantir uma distribuição justa dos turnos, ajudando a reduzir queixas e a fortalecer a confiança dentro da força de trabalho.  
  • Escalas Otimizadas: Criar escalas justas e eficientes que levem em conta as preferências dos colaboradores, garantindo níveis reduzidos de fadiga, pode melhorar a eficiência operacional.

 

Caso de Uso: Metro e Londres

Este operador procurava uma ferramenta de planeamento que fosse rápida, flexível e capaz de otimizar o trabalho de 5.000 funcionários do Serviço de Atendimento ao Cliente (pessoal de estações). O objetivo era encontrar uma solução que maximizasse as preferências dos funcionários, ao mesmo tempo que gerava turnos e escalas válidos e eficientes.

A solução atingiu esses objetivos, além de gerar poupanças significativas nos novos planos de trabalho e uma redução de 57% no tempo de planeamento. Caso de Uso completo aqui.

 

Caso de Uso: Caminhos de ferro do norte da Europa

Uma abordagem testada num caminho de ferro do norte da Europa demonstra a capacidade de um procedimento algorítmico inovador em duas etapas, baseado em dois princípios: a) permitir que os trabalhadores expressem as suas preferências através de pedidos; e b) usar o apoio algorítmico para planear o trabalho de forma a maximizar a satisfação dessas preferências de forma justa. 

Este apoio algorítmico está integrado no Short-term Scheduler, um módulo do CREWS, e foi apresentado na 15ª Conferência Internacional sobre Sistemas Avançados em Transportes Públicos (CASPT 2022) com o título “Crew rostering with fair satisfaction of personal preferences” (apenas em inglês). O artigo do blog “Horários de trabalho desenhados pelos trabalhadores” oferece perspetivas sobre como melhorar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal, aumentar a satisfação no trabalho e potenciar a atração e retenção de talento.

 

5. Potenciar a Tecnologia para Capacitar a Força de Trabalho

A tecnologia oferece soluções transformadoras para a gestão de equipas. Plataformas digitais melhoram a comunicação e disponibilizam ferramentas de self-service, o que permite aos colaboradores gerirem os seus horários de forma mais eficaz.
A analítica avançada prevê as necessidades de pessoal, ajudando os operadores a lidar proativamente com escassez de trabalhadores. Um exemplo disso é um protótipo de previsão de ausências com resultados muito promissores, que permitirá às empresas ferroviárias melhorar o serviço enquanto otimizam a utilização de turnos de reserva e a gestão de cenários disruptivos. As publicações "Modelo de previsão de ausências de tripulantes de transportes ferroviários", "Análise de séries temporais de absentismo no setor ferroviário", e "Um Modelo de Aprendizagem Automática Para Previsão de Ausências de Maquinistas" oferecem perspetivas sobre este protótipo.
Além disso, a automatização de tarefas repetitivas liberta os trabalhadores para funções de maior valor acrescentado, aumentando a eficiência e a satisfação.

 

Caso de Uso: Metropolitano de Lisboa

O Metro de Lisboa utiliza o MyPLAGO, uma solução baseada no CREWS, que permite aos funcionários aceder, em tempo real, a atualizações sobre os seus horários de trabalho e dias de folga. Os colaboradores podem submeter pedidos para trocar turnos, folgas e férias, incluindo a troca de turnos entre colegas da mesma categoria profissional, uma vez que conseguem visualizar os horários uns dos outros. O sistema também simplifica a comunicação de ausências, garantindo transparência e rastreabilidade ao longo de todo o processo.

 

CONCLUSÃO

Garantir um futuro sustentável para as operações ferroviárias exige enfrentar os desafios do recrutamento e retenção de pessoal, que impactam a fiabilidade do serviço, o moral dos trabalhadores e a satisfação dos passageiros.

Embora as pressões demográficas e económicas sejam significativas, podem ser mitigadas através de estratégias inovadoras que aliem tecnologia avançada a uma gestão de recursos humanos flexível. O envelhecimento da força de trabalho exige atrair talento jovem, enquanto a retenção passa por carreiras mais atrativas, com flexibilidade, progressão e maior autonomia. Em termos económicos, a otimização de recursos é essencial para equilibrar custos sem comprometer a qualidade do serviço nem o bem-estar dos funcionários.

A tecnologia desempenha um papel central, desde ferramentas avançadas de planeamento que melhoram e otimizam turnos e escalas de trabalho respeitando as preferências dos trabalhadores, até analítica preditiva para antecipar necessidades de pessoal e automação para reduzir tarefas administrativas. Paralelamente, estratégias eficazes de gestão de pessoas ao nível da formação, da requalificação e de ambientes de trabalho inclusivos, fortalecem as equipas tornando-as mais resilientes e motivadas.

Integrar tecnologia moderna com práticas de gestão flexíveis e inovadoras é essencial para preparar o setor ferroviário para o futuro e garantir a sua relevância no transporte global.